vivências

Contentamentos Descontentes

há 962 semanas


"É um não querer mais de bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;
É ter por quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?"
Luís de Camões


Isabel ainda não caíra em si! Esperava tudo, menos aquela proposta. Não tinha formação, nem experiência em Recursos Humanos. Os únicos contactos que tivera com esta "função", foram na qualidade de dirigente sindical e não tinham sido, em geral, muito pacíficos. Não tinha experiência de gestão de Pessoas e sempre se achara mais técnica do que gestora.

Apesar de tudo isto, Carlos Branco, o director de Recursos Humanos da Celpor, tinha-a convidado, uns minutos antes, para trabalhar com ele, ocupando a vaga de Chefe de Serviços Administrativos de Recursos Humanos. Disse-lhe que há muito tempo que a observava e que pensava que ela era a pessoa indicada para ocupar aquele lugar, acrescentando:

- "O seu conhecimento do negócio e da Empresa é muito importante para ajudar a DRH a aproximar-se das áreas funcionais. O seu bom senso será fundamental para resolver muitos dos problemas sensíveis que passam por aquele serviço. A sua experiência sindical, não só dará uma imagem de abertura à Empresa, como lhe permitirá uma abordagem mais equilibrada aos problemas".

E continuou:

- " A componente técnica da função não é a determinante, até porque terá uma boa equipa a apoiá-la. Liderar é uma arte e não uma ciência e você possui características inatas de liderança. Não se preocupe! O desafio é grande, mas vai ver que não se arrepende".

Apesar de ter ficado muito lisonjeada e de ter respondido afirmativamente, Isabel mantinha muitas dúvidas sobre a sensatez da sua resposta. Sabia que por aquele Serviço passavam assuntos muito sensíveis, que seriam agravados com o processo de privatização, que se iria iniciar em breve. A imagem do Serviço na Empresa não era famosa. Conhecia bem as pessoas que ali trabalhavam e sabia que a maioria eram profissionais competentes e dedicados, mas tinha a impressão que a organização e os métodos de trabalho não eram os melhores. Por ultimo, não estava certa que a componente técnica fosse assim tão irrelevante. As pessoas esperam que os chefes saibam mais do que eles sobre os assuntos, para os poder apoiar.

"A gestão da equipa era o que mais a preocupava".

A Celpor era uma Empresa Publica constituída em 1975, a partir de três empresas familiares, todas elas com várias dezenas de anos de existência e situadas em zonas diferentes do País. Depois de cerca de vinte anos como Empresa Pública, a Celpor era já "uma só empresa". Tinha-se modernizado, tornado líder incontestada no mercado Português e entrado em alguns mercados estrangeiros. Em simultâneo, adquiriu os "defeitos tradicionais" das empresas públicas: Gestão muito condicionada politicamente; Número de empregados muito superior às empresas privadas do sector; Estruturas envelhecidas e com baixo nível de habilitações; Salários baixos (embora com um bom nível de benefícios sociais); Absentismo elevado e muita conflitualidade laboral.

Pouco a pouco, ao longo dos vinte anos de existência, a Empresa tinha sedimentado uma cultura que poderia ser definida como tipicamente "Portuguesa". Apesar da conflitualidade laboral induzida por organizações sindicais poderosas, o ambiente era calmo, agradável e havia um esforço por resolver todos os problemas de forma consensual. As pessoas eram tratadas de forma afectuosa e existia em todos os assuntos um grande respeito pelos sentimentos das pessoas envolvidas. Era muito raro a Empresa tomar a iniciativa de despedir alguém, havendo sempre mais uma oportunidade.

Os objectivos globais eram perfeitamente atingíveis e os meios para os alcançar estavam disponíveis. Os salários base eram razoáveis para o sector, embora estando espartilhados numa grelha existente há muitos anos e que criava condições de promoção quase automáticas. O grande investimento da Empresa ao longo dos anos tinha sido nas regalias sociais. Eram iguais para todos e claramente superiores ao habitual no mercado. Os prémios de desempenho eram de valor pouco significativo e, essencialmente, ligados a objectivos colectivos. Há muito que todos os assumiam como parte da remuneração anual.

Normas e procedimentos eram quase inexistentes, havendo uma tradição de relação informal e de resolver os problemas de forma amigável. Em contrapartida, havia muito formalismo na modo de vestir (fato e gravata), na distribuição e decoração dos escritórios (um andar para a Administração e Direcção) e na forma das pessoas comunicarem (grande importância dos títulos). Vestia-se e apertava-se o casaco para ir ao andar da Administração. A lealdade à Empresa era um dos valores mais fortes, existindo várias formas de celebração colectiva (comemoração dos aniversários, dia da Empresa, festa de Natal, etc) que o reforçavam.

Enfim, um ambiente "tradicional e confortável".

A Empresa estava desde há vários anos a preparar-se para ser privatizada. Tudo levava a crer, que o processo se iria iniciar em breve e que passaria pela entrada dum "player" internacional, aliado a um grande grupo nacional, que já detinha unidades produtivas no sector. Esperava-se um processo doloroso, com uma redução significativa do número de empregados (provavelmente, a médio prazo, a concentração em apenas duas unidades produtivas) e uma alteração radical na cultura da empresa. As perspectivas não eram animadoras, bastando, para tal, ver o que se passava nas outras empresas desse grupo privado nacional.

Antes de iniciar as funções, Isabel pediu a Carlos Branco alguns dados sobre o Serviço para poder conhecer melhor o grupo de trabalho em que se iria integrar.

Trabalhou e sintetizou os elementos fornecidos nas três figuras seguintes:

Fig.1 - Organograma da Direcção de Recursos Humanos

Fig. 2 - Quadro de Ratios de Recursos Humanos

Fig. 3 - Quadro resumo de absentismo

Numa primeira e breve análise dos quadros, Isabel notou que a taxa de absentismo do seu grupo de trabalho era muito superior à da Empresa e da própria Direcção de Recursos Humanos, com especial incidência na unidade 1, onde atingia os 16.2%, dos quais muito perto de 50% se deviam a baixas de duração inferior a um mês. Teria de investigar as razões, porque estes dados poderiam ser indiciadores de alguns problemas.

O "turnover" do Serviço, apesar de alto (16.6%) não lhe parecera preocupante, porque, na realidade, tinham saído apenas dois colaboradores voluntariamente. Mudou, contudo, de opinião, quando percebeu que, nos últimos três anos, dois ou três empregados por ano abandonavam a empresa por iniciativa própria e que eram, quase sempre, pessoas licenciadas, com menos de dois anos de casa e oriundas do Planeamento e da Unidade 1. "Tinha de perceber porquê".

"Olhou" também para os números de horas de trabalho suplementar realizadas no ano anterior e concluiu que eram relativamente baixos, com excepção da Unidade 1, na qual tinham sido feitas seiscentas e trinta e três horas extraordinárias no ano anterior. Nos outros subgrupos, notava-se que apenas esporadicamente se recorria ao uso de trabalho suplementar.

Um elemento muito interessante que lhe foi fornecido pelo Carlos Branco foi o resultado dum inquérito de clima organizacional, realizado cerca de seis meses antes. Os resultados eram reveladores: O índice de satisfação dos empregados do Serviço estava em linha com o da restante Empresa e era bastante razoável, sendo 3.6 no global e variando entre os 3.9 na Unidade 3 e os 2.8 na Unidade 1. As pessoas gostavam do trabalho que executavam (4.3), tinham bastante orgulho em trabalhar na Celpor (4.1) e em regra, consideravam que as chefias os tratavam com respeito (3.4). Por outro lado, avaliavam muito negativamente a comunicação interna (2.5) e a colaboração entre sectores (2.8).

Quando fez uma análise mais profunda, verificou que os valores da Unidade 1 eram, em regra, inferiores aos das outras unidades, em especial nos pontos que focavam as relações com as chefia e a comunicação.

A sua primeira acção como Chefe dos Serviços Administrativos de Recursos Humanos, foi ter uma conversa individual com todos os colaboradores do serviço e uma reunião mais completa com os Chefes dos quatro grupos de trabalho. Estas conversas vieram confirmar algumas das conclusões que já extraíra da análise dos dados e trazer-lhe mais alguns motivos de preocupação.

Embora já tivessem tido alguns contactos no passado, Isabel teve uma longa e agradável conversa com a Teresa Marques, Responsável pelo "Gabinete de Planeamento & Estudos" há cerca de sete anos. Teresa era licenciada em Gestão, com uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos, e, segundo ela, tinha-se transformado numa técnica desta especialidade. Considerava que o seu maior defeito era "ser perfeccionista" em tudo o que fazia. Dizia ter um "bom grupo de trabalho", alguns dos quais ainda bastante novos, mas tecnicamente muito competentes. Referia muitas vezes acções do Rodrigo Melo, que "considerava o seu braço direito". Afirmava que gostava que "cada um assumisse as suas tarefas com autonomia", gostando muito de delegar. Infelizmente, "algumas pessoas não estavam preparadas para trabalhar com autonomia" e, no passado, vários dos seus colaboradores tinham abandonado a Empresa.

Da conversa com os técnicos do "Planeamento", percebeu algumas cambiantes da imagem passada pela Teresa. Todas as pessoas a consideravam uma excelente técnica e uma pessoa de trato afável e sempre disposta a colaborar. Lamentavam que ela "não saísse do gabinete" e que se limitasse a distribuir tarefas, muitas das vezes, sem qualquer preparação e acompanhamento. Este desacompanhamento criava um sentimento de insegurança, para além duma falta de orientação e de disciplina no tratamento dos assuntos. A "confusão" que se gerava já tinha levado à saída de algumas pessoas".

Concluiu que, na prática, a pouca coordenação que existia era feita pelo Rodrigo Melo, que acabava por ser o líder do grupo. Possuidor de uma personalidade, bastante forte e contestatária, Rodrigo acabava por assumir algumas das áreas "abandonadas" pela Teresa. No entanto, muitas vezes, esta liderança não "institucionalizada" do Rodrigo era vista, pelos outros colegas, como intromissão e, pelos outros sectores, como desautorização da Teresa.

O António Janicas, responsável pela Unidade 2 era seu amigo de há muito. Não só tinha sido ele que tinha tratado da sua admissão oito anos antes, como se tinham encontrado muitas vezes, no âmbito das actividades dum grupo Católico, a que ambos pertenciam. Achava-o uma excelente pessoa. O António tinha trabalhado, desde sempre, para a família que era a antiga proprietária duma das três Unidades produtivas, que deram origem à Celpor. Era um homem muito conhecido e querido em toda a Empresa, nomeadamente, ao nível da Direcção. Assuntos de maior confidencialidade ou melindre eram-lhe confiados a ele, pessoalmente. Todos reconheciam a sua excelente capacidade de relacionamento a todos os níveis. Tinha tido um papel "apaziguador", em vários momentos de grande conflitualidade na Empresa. A sua equipa era constituída por pessoas com bastantes anos de casa e com pouca formação. Isto não ajudava a compensar as falhas de António em termos de capacidade de organização e de conhecimentos técnicos. Era, sem dúvida, a Secção com pior "performance" das três.

Os colaboradores da unidade 2 gostavam muito de trabalhar com o António Janicas. Diziam, com orgulho, que eram uma verdadeira equipa. Tudo era discutido e decidido em conjunto. Viam-no como "um amigo que está sempre disposto a defendê-los e a apoiá-los em tudo". Sentiu nas conversas com eles, que eram pessoas "satisfeitas" e não demonstravam interesse em qualquer projecto de mudança. Só o criticavam o "chefe" devido à sua incapacidade de dizer não aos outros sectores. Uma das suas frases preferidas era "albarda-se o burro à vontade do dono". Na Celpor havia constantes mudanças de "dono", o que fazia com que andassem sempre a mudar tudo.

Isabel ficou muito bem impressionada com o Valério Gamito, responsável pela Unidade 3. De uma forma sóbria e profissional, Valério demonstrou-lhe que tinha um assinalável "track record" de projectos inovadores no passado e também que sabia bem qual o papel que ele e a sua equipa de trabalho deviam ter no futuro. A gestão da mudança organizacional era uma das suas grandes preocupações. Entendia que o essencial do seu papel, enquanto gestor de Recursos Humanos, era contribuir para o negócio através das pessoas e vice-versa. Pareceu-lhe uma pessoa com uma formação técnica muito sólida. Tinha uma grande preocupação em fazer crescer os membros da equipa, trabalhando muito em equipa com eles. Gostava de os fazer participar "em projectos de Recursos Humanos e não só". Demonstrou um bom conhecimento do negócio e uma grande orientação para os "seus clientes". "Todos os dias dou um "passeio" pela fábrica. É a melhor forma de sentir o pulsar da organização para o poder levar para a mesa da direcção".

No fim da conversa, Isabel sentiu que tinha aprendido bastante e que "os Recursos Humanos até poderiam ser uma área interessante".

Os membros da equipa confirmaram esta sua ideia. Todos eles respeitavam o Valério e reconheciam que trabalhar com ele lhes trazia valor acrescentado. Para além do conhecimento técnico, realçavam a forma como lhes "vendia" novos projectos, a sua capacidade de os ouvir, a abertura a novas iniciativas e a confiança que depositava neles. Para o Valério "um erro era sempre uma oportunidade de aprendizagem para a equipa". Criticavam-no um pouco pela falta de agressividade na defesa dos interesses da equipa, nomeadamente, em termos de aumentos salariais. "Nesta empresa quem mais grita é quem mais leva e o Valério, sabe afirmar a sua posição, mas não gosta de gritar".

Maria do Carmo Tavares, chefe da Unidade 1, mostrou ser uma pessoa directa, de convicções fortes e muito organizada. Tinha crescido na Empresa onde estava há mais de dezoito anos. Acreditava que as razões do "seu sucesso na Celpor" se deviam à sua exigência e rigor consigo e com os outros e à capacidade de atingir resultados. Tinha muito orgulho na eficácia da sua secção. "Com quatro pessoas, fazemos mais trabalho do que nas outras áreas com o dobro". Gostava de referir o seu grupo como uma "máquina onde cada peça sabe, até ao detalhe, o que fazer e como o fazer". Mostrou, várias vezes, com vaidade os "resultados do seu trabalho". "Foi a primeira unidade a ter o novo sistema informático de processamento de vencimentos a funcionar. Trabalhei muitas noites até de madrugada, mas consegui". Achava que os outros sectores não compreendiam as "obrigações legais" que os Recursos Humanos têm de fazer cumprir e que não valorizavam devidamente o seu trabalho. Considerava-se um pouco incompreendida na Celpor", devido à "cultura de balda que existia na Empresa".

Isabel conseguiu perceber nas "entrelinhas" das conversas com os colaboradores desta unidade, algumas diferenças de "visão". A Carmo era vista por todos como muito competente do ponto de vista técnico e extremamente dedicada à Empresa. "É sempre a primeira a chegar e a última a sair". Definia de forma muito pormenorizada e equitativa o que cada um tem para fazer e como o deve fazer. Era bastante exigente quanto à qualidade do trabalho e muito avessa a qualquer espécie de inovação ou iniciativa que pudesse colocar em risco essa qualidade. "A roda já foi inventada há muito tempo", era uma das suas frases típicas. Um dos colaboradores mais novos criticou a forma, por vezes, "desabrida" da Carmo "avaliar e punir qualquer engano" e, principalmente, o nunca ter uma palavra de reconhecimento por qualquer esforço ou resultado. "Vocês já sabem que eu tenho pouco jeito para essas coisas", costumava dizer.

Duas semanas depois de ter começado, Isabel teve a primeira reunião com o seu novo chefe.

Com um sorriso na boca, Carlos perguntou-lhe:

- "Então Isabel, já se arrependeu?

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