vivências

À mesa ou na mesa

há +963 semanas
"Tudo que faço ou medito
fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito;
Fazendo, não é verdade."

Fernando Pessoa - Letras

As "sopas do Espírito Santo" estavam deliciosas. Marcelino e Paula aproveitaram o convite do Sr. Alfredo para irem experimentar ao seu "Bambino" aquele prato típico Açoriano, para voltar a encontrar-se. Há meses que não se viam.

Marcelino Barreno era um profissional de Recursos Humanos, com muitos anos de experiência. Tinha começado a sua carreira, há perto de trinta anos, como Delegado de Informação Médica (DIM), na mesma Empresa (embora com um nome diferente) onde ainda se encontrava. Ao fim de poucos anos, concluiu a sua licenciatura em Sociologia e assumiu a responsabilidade pela "Secção de Pessoal". Em trinta anos a Empresa tinha crescido muito. Foi adquirida por uma multinacional Farmacêutica Americana, em meados dos anos oitenta, fundiu-se com uma Empresa do Norte da Europa nos primeiros anos da década de noventa e adquiriu outras duas Empresas, durante essa mesma década.

Marcelino contribuiu activamente em todos esses processos que levaram à criação da hoje denominada StuartReynolds. Gostava de estar próximo das pessoas, sabia do seu ofício, conhecia bem a Empresa e o negócio e tinha ganho grandes competências em processos de mudança organizacional. Considerava-se e era considerado, como um bom profissional de Recursos Humanos.

Paula Laginha tinha começado a trabalhar como estagiária na equipa de Marcelino, logo a seguir a concluir a sua licenciatura em Psicologia. Reconhecia, cada vez mais, que essa primeira experiência de quatro anos tinha sido determinante no seu desenvolvimento profissional. Apesar dos anos que passaram e de se terem tornado amigos pessoais, ainda hoje o considerava como o seu "professor". Tinha deixado a indústria farmacêutica há cerca de oito anos. Passou pela gestão de Recursos Humanos de dois outros sectores e estava há três anos como Directora de Recursos Humanos da Distrishops, empresa multinacional, especializada na distribuição de livros, discos e filmes em grandes espaços comerciais, que possuía cinco lojas em Portugal, com um total de mais de mil e oitocentos empregados.

Desde o primeiro minuto do almoço que Paula se apercebeu que algo não estava bem com o seu amigo. Na altura do "Espera maridos" como sobremesa, Marcelino disse-lhe:

- Paula, estou a pensar muito seriamente em pedir a demissão da StuartReynolds.

- A sério? O que se passa de tão grave que te leve a tomar essa decisão. Sei que não gostas muito do estilo do teu actual Director Geral (DG), mas, se nós nos Recursos Humanos abandonássemos as empresas só porque não nos damos bem com o DG, Portugal tornava-se no paraíso dos caçadores de cabeças.

- Sabes bem que não é só isso! Desta vez, as coisas foram longe de mais.

Em seguida, Marcelino contou-lhe que, desde que Pablo Gimenez tinha sido nomeado Director Geral da StuartReynolds ia fazer três anos, tudo na Empresa tinha vindo a piorar gradualmente.

Pablo, nascido em Caracas há perto de cinquenta anos, licenciado em Ciências Farmacêuticas, costumava dizer que "lhe tinham nascido os dentes na indústria farmacêutica". Tinha entrado na antiga Reynolds, há mais de trinta anos como empregado de armazém. Subira a pulso na Empresa. Era, reconhecidamente, muito dedicado e tecnicamente muito competente. Os seus trinta anos de experiência em funções e mercados muito diversos, tinham desenvolvido a capacidade de ter uma excelente visão global dos assuntos e, em simultâneo, conseguir ver todos os detalhes. Raramente as suas críticas eram infundadas.

Tinha, no entanto, uma personalidade marcada por extremos emocionais, que fazia com que as pessoas nunca soubessem o que poderiam esperar dele. Nos "dias bons", tudo eram rosas e a equipa uma espécie de "dream team". Nos "maus dias", procurava culpados para tudo o que, na sua opinião, estava menos bem e descobria as razões para punir "o culpado". Depois de umas quantas fases depressivas, misturadas com outras tantas de euforia, as pessoas passaram a temê-lo, mais do que a respeitá-lo.

O problema, como dizia Marcelino, é que "em tempos difíceis, como os que está a viver a nossa indústria, quase não há "dias bons".

Embora mantendo uma capa de abertura, Pablo tinha, pouco a pouco, centralizado nele todas as decisões, desde as mais estratégicas até às operacionais mais simples. Como exemplo, Marcelino contou que se tinha "fartado de suar" para conseguir "roubar" à concorrência o melhor Product Manager (PM) de antidepressivos do mercado e ele tinha abandonado a Empresa ao fim de dez meses, alegando que "não queria estar numa Empresa, onde até as canetas para oferecer aos médicos eram escolhidas pelo Director Geral". O mais grave, continuou Marcelino, é que o discurso oficial era o de que as pessoas deveriam ter iniciativas e assumir riscos. No entanto, quando alguém se atrevia a expor alguma ideia ou a tomar iniciativa que não se enquadrasse na "construção" que o Director Geral tinha na cabeça, não só era criticado publicamente, como passava de "bestial a besta" de imediato. "E quem está na berlinda, passa tempos muito difíceis até ele se esquecer ou arranjar outra vítima".

A equipa de direcção desentendeu-se completamente. Todos os directores sabiam que, mais tarde ou mais cedo, iria chegar o seu momento de ser "besta" e que não teriam o apoio de ninguém. Por isso, cada Departamento queria apenas estar descansado no seu canto, com o mínimo de exposição e de interferências. Este clima de medo baixou drasticamente o nível de cooperação entre departamentos. As decisões passaram a ser tambem menos participadas e, consequentemente, menos correctas e a sua implementação menos entusiástica, pela falta de envolvimento.

Ultimamente, uma frase muito ouvida na Empresa é " A StuartReynolds era uma boa empresa, apesar do Director Geral".

E Marcelino prosseguiu: "Como é evidente os resultados deste tipo de gestão já estão a aparecer". A saída de empregados (em especial os melhores e mais empregáveis) aumentou significativamente. O absentismo aumentou para níveis inimagináveis. Vários empregados estão em casa com depressões. A imagem da empresa tem vindo a degradar-se junto dos médicos. As quotas de mercado dos produtos mais importantes têm caído a pique. "Lançámos dois produtos nos últimos três anos que foram autênticos "flopes". "Enfim, uma desgraça! Parece que vêm aí os genéricos. Sempre servirá de desculpa".

"E tu o que tens feito"? Perguntou Paula, acrescentando, "não me pareces homem para ficar de braços cruzados"

A resposta de Marcelino foi hesitante: "Tenho feito o melhor que sou capaz. No entanto, acho que a Empresa está a caminhar para um precipício e eu sinto-me completamente impotente."

Explicou, em seguida, que usou, durante meses, toda a sua capacidade de influência junto do Pablo e também junto dos outros directores. Passou horas a tentar convencer o Director Geral a melhorar alguns aspectos da sua liderança. Tentou que ele aceitasse uma experiência de "coaching", .... que foi recusada prontamente. Conseguiu fazer uma acção de "team building" para a equipa de direcção que teve resultados positivos... durante quinze dias.

"Só se fizer o que muita gente parece estar a fazer: "Colocar uma velinha numa igreja para ver se ele muda para outro País ou regressa à Venezuela".

"Embora o que se está a passar seja evidente e, em privado, ninguém o conteste, em público, parece que não entendem o que eu digo. No fim, ainda fico com a sensação de ser um mau profissional". Nos últimos tempos os Recursos Humanos eram os bombos da festa nas reuniões de Direcção.

Quando percebeu que a situação se estava a agravar, Marcelino pediu a ajuda do seu chefe, o VP de Recursos Humanos da Europa, Paul Morallee, que ficou muito alarmado e fez uma viagem a Portugal para falar com ele. Marcelino confessou-lhe abertamente o que sentia. Referiu-lhe o clima que se vivia na Empresa, contou-lhe algumas conversas que tinha tido e deu-lhe alguns exemplos de saídas de pessoas. Paul ouviu-o com muita atenção e preocupação e informou-o que iria fazer o que estivesse ao seu alcance para ajudar. Nessa tarde, falou com o Director Geral e com o Director Financeiro. Entretanto, passaram-se quase seis meses desde essa visita e não tinha sido encetada qualquer iniciativa.

A gota de água tinha sido na passada terça-feira. Desesperado com mais uma saída de um dos melhores DIMs, duma das poucas zonas (Braga) onde a StuartReynolds ainda conseguia manter as quotas de mercado, Marcelino decidiu falar abertamente na reunião do Comité de Direcção. Referiu o mau clima que se vivia na Empresa, a desmotivação dos empregados, a falta de cooperação entre Departamentos e deu exemplos de duas ou três saídas anteriores.

A resposta veio pelas bocas do Director Geral e do Director Financeiro. Afirmaram que não percebiam porque estava ele a dramatizar a saída de duas ou três pessoas. "Algumas delas, até nem eram grandes profissionais e nunca deviam ter sido recrutadas". O clima já tinha estado muito pior. Poderia até estar mal nalguns departamentos, mas estava bons noutros. "Tanto quanto sei, no meu departamento (Financeiro) não existem queixas". Cada Departamento tinha sua função específica e desempenhava-a bem. "Não conheço nenhum caso em que algum departamento tivesse negado a outro alguma cooperação quando solicitada". Seguiu-se uma discussão muito acesa a três, onde tudo aquilo que ele referia, era colocado em dúvida, por ser a "sua percepção" ou era desvalorizado. Os outros participantes na reunião mantiveram um silêncio incomodado.
No fim, Pablo acusou-o de estar a fazer uma tempestade num copo de água.

"Já sei quem vai ser o próximo a passar a "besta!", disse Marcelino com ar preocupado.

Paula não sabia o que dizer. Se aquilo que tinha ouvido sobre o Director Geral da StuartReynolds era verdade, o Marcelino iria passar um mau bocado. Decidiu tentar animá-lo.

- "Lembras-te do Alberto Mendes, que eu fui substituir na Distrishops? Na altura da minha admissão, procurei-o e tive uma longa conversa com ele. Ele contou-me que a sua saída da Distrishops se deveu a uma situação similar à que tu estás a viver na Stuart. Na verdade, Alberto tinha explicado detalhadamente a Paula que, quando trabalhava na Distrishops, "sentia que o clima que se vivia na Empresa não era bom e piorava todos os dias, o que se reflectia negativamente em muitos aspectos, nomeadamente, na satisfação dos clientes". Tinha feito várias tentativas para sensibilizar o "Management Team" da necessidade de inverter o caminho, mas "parecia que ninguém o entendia ou não queria entender". Farto de pregar no deserto, procurou outra oportunidade no mercado e foi-se embora.

Paula considerava que aquela conversa tinha sido importantíssima. "Ele é muito bom profissional e tudo aquilo que ele me disse, eu vim a confirmar. Fez-me poupar muito tempo de aprendizagem, evitou que eu cometesse alguns erros e permitiu-me amadurecer algumas soluções".

Poucos meses depois da sua admissão, quando ainda estava em "estado de graça", Paula convenceu o "Management Team" a deixá-la fazer, com ajuda de um consultor, um inquérito de atitude em toda a Empresa. Os resultados desse inquérito mostravam, globalmente, valores altos nos aspectos relacionados com a função desempenhada (4.0) e com o orgulho de pertencer à Empresa (4.2) e valores baixos em aspectos relacionados com a comunicação (2.4) a liderança (2.6) e cooperação entre sectores (2.9).

No entanto, havia um grande desfasamento entre as cinco lojas. Os resultados eram muito elevados na loja de Espinho e muito baixos na loja de Cascais. Quem os analisasse em separado, poderia, facilmente, pensar que estas duas lojas pertenciam a Empresas diferentes.

Numa reunião de direcção posterior, Paula apresentou os resultados do inquérito. Inicialmente, apresentou apenas os resultados globais. Os comentários dos directores foram que "Os resultados confirmavam muito do que pensavam. Todos sabemos que temos de melhorar a comunicação interna". Consideravam alguns índices como bastante interessantes, mas, "não havendo nada para comparar, poucas conclusões poderiam ser tiradas". Tinham, de facto, razão!

De seguida, apresentou um quadro comparativo dos índices por loja. Foi evidente algum incómodo. Esboçaram-se algumas dúvidas sobre a fiabilidade do inquérito. "As pessoas muitas vezes não dizem a verdade". Fizeram-se algumas tentativas para justificar os resultados menos bons de algumas lojas. "Como todos sabem, Cascais sempre foi uma loja muito difícil". Mas, até aqui, o impacto dos resultados do inquérito era mínimo.

As coisas mudaram de tom quando Paula apresentou um quadro em que relacionava os índices de satisfação dos empregados de cada loja, com a taxa de absentismo no semestre, o "turnover" voluntário de empregados, a percentagem de quebras e, por último, com os resultados do inquérito de satisfação de clientes do semestre anterior e a lucratividade por loja do último ano.

Saltava à vista que havia uma correlação forte entre os indicadores. Cascais apresentava os piores índices de satisfação dos empregados, os piores índices de satisfação de clientes e era a loja menos lucrativa. Era também a que tinha uma taxa de absentismo mais elevada e maiores quebras. A loja de Espinho, em contrapartida, era a que tinha melhores resultados em todos os indicadores, sendo, por larga margem, também a loja mais lucrativa. Quase não houve discussão e a preocupação transparecia na cara de todos os participantes na reunião.

No fim, todos lhe deram os parabéns. Mas, mais importante do que isso, a Direcção aceitou as suas propostas de testar medidas ao nível da liderança e do trabalho em equipa em duas lojas diferentes e também a criação dum novo plano de incentivos. Os resultados obtidos nestas duas experiências seriam medidos e serviriam para tomar a decisão de avançar ou não para toda a Empresa.

"A partir daquele dia, a Direcção de Recursos Humanos passou a sentar-se à mesa de reuniões em vez de estar na mesa ".

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